De olhos esbugalhados e pele verde brilhante, a rã amazônica kambô (Phyllomedusa bicolor) é conhecida pelas propriedades medicinais de sua secreção, usada por diversos povos indígenas amazônicos. E ela já está chamando a atenção de empresas estrangeiras.
Um novo estudo realizado pelo pesquisador Marcos Vinício Chein Feres, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), mostrou como esse caso ilustra a complexa relação entre o uso sustentável do patrimônio genético e o respeito ao Conhecimento Tradicional Associado (CTA), como é chamado o conjunto de informações que povos tradicionais adquirem por meio de sua experiência junto à natureza.
“Percebemos que, para se configurar a indicação do Conhecimento Tradicional Associado, era necessário não só as propriedades químicas da secreção da rã, mas também os usos tradicionais praticados pelos indígenas”, explicou Feres.
Ao cruzar dados do banco de patentes com relatos etnográficos associados aos usos tradicionais, Feres concluiu que há mais de quinze grupos indígenas que fazem uso da secreção da Phyllomedusa bicolor.
Em seu estudo, o pesquisador identificou onze registros de patentes relacionadas ao anfíbio, todas feitas em países do Norte Global, incluindo Estados Unidos, Canadá, Japão, França e Rússia.Isso pode configurar uma violação às leis do Brasil e dos direitos de povos tradicionais.
De acordo com Feres, que também é advogado, a pesquisa mostra como acontece o processo de apropriação de conhecimentos tradicionais associados a recursos genéticos da biodiversidade brasileira: “Esse tipo de apropriação fortalece a desigualdade entre países em desenvolvimento, ricos em biodiversidade, e países desenvolvidos, ricos em tecnologia.”
Para se ter ideia, em 2006, 41,5% dos pedidos internacionais de patentes de biotecnologia no âmbito do Tratado de Cooperação de Patentes tiveram origem nos Estados Unidos, 27,4% na União Europeia, 11,9% no Japão e apenas 4% nos países do BRIICS (Brasil, Rússia, Índia, Indonésia, China e África do Sul).
Antes do Protocolo de Nagoia, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, também conhecida como Eco-92, realizada em 1992, teve como um dos resultados a instauração da Convenção Sobre Diversidade Biológica (CDB). Nessa convenção, criou-se o conceito de repartição de benefícios e foi estabelecido que cada país criaria as suas regras para definir os usos sobre a biodiversidade nos seus territórios.
Para colocar regras nesses mercados em âmbito internacional, foi criado em 2010 o Protocolo de Nagoia, que tem o objetivo de regular o “acesso a recursos genéticos e a repartição justa e equitativa dos benefícios advindos de sua utilização”. O Brasil ratificou o acesso ao protocolo em 2021.
Atualmente, a lei brasileira determina que a parte interessada deve fazer um cadastro no sistema conhecido como SisGen — o Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado. O processo é autodeclaratório e qualquer indústria ou usuário que quiser fazer uso de pesquisa e desenvolvimento relacionados a alguma espécie da fauna ou da flora brasileiras precisará inserir o registro no sistema.
Com relação à repartição dos benefícios, somente os fabricantes de produtos acabados devem contribuir. Pela regra geral, 1% da receita líquida com a venda de determinado produto tem que ser depositado para o governo por meio do Fundo Nacional de Repartição de Benefícios, cujo objetivo é direcionar os recursos a comunidades indígenas e povos tradicionais. Há casos em que a repartição é não monetária, como a criação e desenvolvimento de projetos ambientais.
Quando há um caso claro de Conhecimento Tradicional Associado, a autorização para o uso desses saberes e a negociação sobre o pagamento pelo uso desse recurso intelectual devem partir diretamente dos povos e comunidades que detêm aquela tradição.
Contudo, há um entrave para usuários do exterior. Como o SisGen por ora está disponível apenas em português, então, teoricamente, empresas estrangeiras estão regulares mesmo sem o registro no SisGen, pois a legislação prevê que elas terão um período de adaptação após a finalização da tradução da plataforma para o inglês.
Quanto vale?
Para o advogado Luiz Ricardo Marinello, coordenador da Comissão de Estudos de Indicações Geográficas da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI), os tratados internacionais nasceram para equilibrar o jogo entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento.
“É uma forma de aproximar esses países e contribuir com a erradicação da pobreza e da exploração dos recursos naturais e com o pagamento pela repartição de benefícios ou transferência de tecnologia”, disse Marinello.
“Há muita queda de braço. Os países desenvolvidos não querem pagar uma conta alta. Qual é o valor justo para uma indústria farmacêutica americana acessar um ativo amazônico? A discussão é mais política do que legal”, explicou o advogado.
Um exemplo prático é o medicamento captopril, feito com o veneno da jararaca (Bothrops jararaca) e um dos fármacos mais populares para pressão alta. A primeira pesquisa sobre a substância foi publicada em 1965 e estima-se que a venda mundial desses medicamentos tenha ultrapassado o montante de 8 bilhões de dólares.
De acordo com o analista ambiental licenciado do Ministério do Meio Ambiente, Henry Novion, que trabalhou na elaboração da legislação brasileira e no desenvolvimento do SisGen, o foco do Brasil não está no registro de patentes.
“Se uma empresa deveria ter o registro no sistema e não tem, é uma infração. Mas decidimos focar na empresa que vai licenciar para outras diversas, pois, nesse caso, teremos dezenas produtos sendo vendidos pelo patrimônio genético”, disse Novion.
Para ele, depositar uma patente que tenha alguma relação com a rã, que é uma espécie muito estudada, não é um problema – a não ser que se trate de Conhecimento Tradicional Associado. “No fim das contas, quanto desse universo de patentes se transforma em um produto que gera valor? Se uma patente não gera nenhum tipo de transação comercial, ela é só uma expectativa de direito”, afirmou.
No entanto, o problema surge quando a patente inclui um conhecimento de povos indígenas, explicou Novion. “Isso fere os direitos dos povos tradicionais sobre aquele conhecimento. Vai além da propriedade daquele povo, é um patrimônio de todo o povo brasileiro. É uma obrigação do Estado proteger aquele conhecimento”.
Conhecimento e capacitação
Independentemente do momento da pesquisa em que se agrega valor, a forma como o mercado de patentes funciona é prejudicial aos povos indígenas pela maneira como foi desenvolvido.
“As práticas tradicionais são desconsideradas pelo paradigma científico convencional. O resultado desse processo de apropriação consiste em um monopólio autorizado pela lei, que é a exclusividade temporária sobre um produto, e que acabará sendo ofertado aos países de onde esses conhecimentos foram extraídos”, afirmou Feres.
No estudo “Destravando a agenda da bioeconomia: soluções para impulsionar o uso sustentável dos recursos genéticos e conhecimento tradicional no Brasil”, publicado em 2021 pelo Instituto Escolhas, a instituição identificou que a legislação vigente apresenta uma série de entraves para sua operacionalização.
De acordo com a coordenadora de projetos do Instituto Escolhas, Stella Pieve, os principais obstáculos sõ a ausência de sistematização de conhecimentos tradicionais associados em um banco de dados que identifique detentores e proporcione a devida repartição de benefícios; a falta de capacitação dos usuários para atender e cumprir a legislação vigente, o que pode gerar impedimento para a utilização da biodiversidade para pesquisa e desenvolvimento; e a falta de apoio para a operacionalização da lei por comunidades tradicionais, o que dificulta a negociação de Acordos de Repartição de Benefícios.
A partir das conclusões do estudo, o Escolhas desenvolveu uma capacitação de boas práticas para as pesquisas que acessam patrimônio genético e Conhecimento Tradicional Associado. “A exploração e comercialização internacional dos recursos da biodiversidade em desacordo com as normas de cada país é biopirataria. Conhecer a legislação do país é imprescindível para que pesquisadores ou empresas não realizem o acesso irregular destes recursos e sofram com penalizações”, disse Pieve.