Senador alagoano tentava acertar Silvestre Péricles, seu desafeto na política em Alagoas, e acertou o acreano, sem querer
Neste dia 4 de dezembro completa-se 60 anos do assassinato, no plenário do Senado, em Brasília, do senador acreano Kairala José Kairala, morto aos 39 anos, no último dia do mandato de três meses exercido como suplente do então senador José Guiomard Santos. O crime foi cometido pelo também senador da República Arnon de Mello, que pretendia acertar, como revide, seu adversário na política em Alagoas, o senador Silvestre Péricles, que o havia ameaçado de morte. Arnon de Mello era pai do homem que, menos de 30 anos depois da tragédia, seria o primeiro presidente da República eleito pelo voto direto após o fim da ditadura militar, Fernando Collor de Mello.
Descendente de libaneses, natural de Brasiléia, no interior do Acre, Kairala José Kairala, era um comerciante modesto mas muito admirado pela comunidade local. O prestígio levou o ex-governador do território e então deputado federal José Guiomard Santos a convidá-lo para ser seu suplente em sua candidatura ao Senado, a primeira da história do recém-criado Estado do Acre, que saíra da condição de território federal em julho de 1962 por iniciativa de lei de autoria do próprio Guiomard, apresentada sete anos antes. Na época, a legislação eleitoral permitia que o mesmo candidato pudesse concorrer a dois cargos, um no Executivo (para o Governo), e o outro ao Senado. Guiomard perdeu a disputa ao Governo para o professor José Augusto de Araújo, mas sagrou-se senador mais votado com Kairala José Kairala como seu suplente.
Faltando três meses para concluir o primeiro ano do mandato, Guiomard Santos licenciou-se para tratamento de saúde e a mesa do Senado convoca o suplente Kairala para assumir a vacância do mandato pelo prazo de três meses. No período, Kairala foi um senador atuante: fez 13 discursos e apresentou dois projetos.
No dia em que devolveria o cargo ao titular, foi baleado na frente dos três filhos pequenos, da esposa, que estava grávida do quarto, e da própria mãe. A família estava reunida ali no plenário para prestigiar o senador suplente em seu último dia de mandato e para tirar uma fotografia que serviria de recordação.
O clima era tenso no Senado. O então presidente da Casa, o paulista Auro de Moura Andrade (PSD), segundo relatos em seu livro biográfico, pediu reforço na segurança, com guardas à paisana nas galerias e no plenário. Estranhos foram impedidos de entrar no plenário. Assessores tinham que passar por revista, assim como todos que acessavam as galerias, algo incomum naqueles tempos, em que não havia aparelhos de raios-x, nem detectores de metal nas sedes dos Três Poderes da República, na recém-inaugurada Brasília.
Pouco antes do início da sessão, seguranças do Senado desarmaram Leopoldo Collor de Mello, de 22 anos, o filho mais velho do senador Arnon de Mello (PDC), de Alagoas. Leopoldo tentou entrar com um revólver na cintura. Mesmo com o flagrante, foi liberado para seguir adiante, desarmado. Sentou-se perto de um genro do também senador alagoano Silvestre Péricles de Góis Monteiro (PTB), inimigo de seu pai. Era essa rivalidade regional que causava apreensão no Senado.
Era sabido que capangas de Arnon e Silvestre estavam no Congresso com a missão de proteger os patrões. E puxar o gatilho, se preciso. O senador Lino de Mattos ainda subiu à mesa da presidência da Casa e avisou Moura de Andrade que Silvestre Péricles lhe dissera que ia “encher de balas a boca do senador Arnon de Mello”, assim que ele começasse a falar. Antes de abrir os trabalhos, Moura de Andrade fez uma inédita e dramática advertência ao microfone da Mesa Diretora, naquela tarde de galerias lotadas.
“O primeiro orador inscrito é o senador Arnon de Mello. Antes de dar a palavra a sua excelência, a presidência precisa declarar que manterá a ordem e o respeito indispensáveis no Senado, nos limites máximos de sua força. Se, porventura, entre a assistência, ou nos corredores desta Casa, alguém perturbar a ordem, será posto imediatamente em custódia. Se, desatendidas as advertências da Mesa, houver qualquer delito, será imediatamente aberto inquérito e promovida a responsabilidade, inclusive com a lavratura do auto de flagrante indispensável e entrega às autoridades competentes”, afirmou o presidente, segundo os registros do Senado.
Silvestre Péricles, um militar, ex-delegado e herdeiro de família com peso na política nacional, já havia mandado recado ao inimigo, por meio de outros senadores, que, se tecesse alguma palavra contra ele, seria morto ali mesmo, dentro do Senado. Repetia, em voz alta, na cafeteria da Casa, para que todos os funcionários e parlamentares presentes ouvissem, que encheria “de balas a boca” de Arnon. Pouco antes do início da sessão, Silvestre passou pela área reservada aos jornalistas e anunciou: “Vocês querem espetáculo, e vão ter.” O Péricles não sabia que Arnon de o elo também era de briga, era outro que andava armado no Senado.
O senador acreano nada tinha a ver com a rivalidade dos dois coronéis do Nordeste brasileiro. A princípio, sequer deveria estar na fatídica sessão. Kairala pediu ao presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, para participar da reunião de 4 de dezembro no plenário porque só deixaria Brasília no dia 5, data com voo mais barato para Rio Branco, capital do Acre, e queria fazer uma despedida com a família, numa festa que não houve. Kairala foi ferido com um tiro no peito.
Consta que no tiroteio, ele havia se jogado sobre o senador Silvestre Péricles, que era o alvo de Arnon de Melo. Ao iniciar seu discurso na tribuna, Arnon de Melo ouvia digrações do adversário e ameaças de que iria matá-lo ali mesmo. Magro, Arnon de Melo esquiva-se do que seria o tiro fatal, saca a arma e mira o adversário e acaba acertando o senador acreano. Kairala chegou a ser levado rapidamente ao Hospital Distrital de Brasília – atual Hospital de Base –, onde deu entrada às 15h45, indo direto para o centro cirúrgico, com os intestinos e a veia ilíaca trespassados. Recebeu 16 litros de sangue por meio de diversas transfusões. Muitos deles doados por senadores e deputados que correram para a unidade de saúde. Em vão. Kairala morreu às 20h05, na mesa de cirurgia.
Antes da sessão que terminaria em tragédia, a família Kairala estava na tribuna de honra do Senado: a mãe, o filho e a esposa do senador. Ele conversava com os três animadamente, no momento em que soou a campainha anunciando o início dos trabalhos. Mudou de cadeira por duas vezes. Escolheu a última fila do primeiro lance de cadeiras, diante da tribuna de honra. Até então, ele nunca havia sentado naquele lugar, mas era o melhor que convinha para a fotografia que o filho ia tirar. Em seguida começou a confusão que culminaria na morte do senador. Não se sabe se o menino conseguiu a foto desejada.