Nos últimos dez anos, 32 pessoas que se apresentaram como novos médicos ao Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) acabaram com os nomes em registros policiais por suspeita de uso de documentos falsos.
A pedido do g1, o Cremesp e o Coren-SP (Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo) levantaram a quantidade de suspeitos que tentaram se cadastrar para obter os registros destinados apenas aos graduados com anos de estudo; em relação ao Coren, foram 12 casos só em 2022.
O que você precisa saber:
- 32 pessoas apresentaram diplomas ou certificados falsos em 10 anos ao Conselho Regional de Medicina de São Paulo;
- A intenção delas era conseguir o CRM, o registro profissional que equivale ao CPF;
- Documentação protocolada por elas foi checada com unidades de ensino superior e as graduações negadas;
- O g1 detalhou cinco dos 32 casos investigados pelo Cremesp;Suspeitos reconheceram o crime ou disseram terem sido vítimas de golpes;
- Coren-SP (Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo) também levantou para o g1 documentos falsos com erros básicos.
Os documentos analisados usam nomes de diretores de unidades de ensino reais, mas com montagens falsificadas, segundo apurações dos dois órgãos.
Alguns são supostamente carimbados com selo do Ministério da Educação, mas têm erros de português ou de formatação básica.
Cinco pessoas suspeitas foram procuradas pelo g1 .
De acordo com o diretor primeiro-secretário do Cremesp, Angelo Vattimo, dois setores analisam dados de pessoa física ou jurídica.
“O setor é muito bem estruturado, tem uma metodologia muito eficiente de controle. Sinceramente, as pessoas que têm essa ousadia de tentar registrar um diploma falso seguramente não vão ser bem-sucedidas. Temos vários níveis de checagem, então não basta trazer o documento e achar que vai ser registrado”, afirmou.
Uma das checagens é a confirmação com a instituição que emitiu o documento. Quando a farsa é confirmada, o procedimento é cancelado e é registrado um boletim de ocorrência por uso de documento falso.
“Queremos é desencorajar. Não adianta vir, não vai conseguir. Nós não vamos registrar e vamos usar todas as alternativas legais para essa pessoa ser processada e responsabilizada”, afirma.
Falso médico com atendimentos
O falso médico Gerson Lavísio está na lista do Cremesp. Sem nenhuma formação, ele chegou a trabalhar como socorrista na Rodovia Presidente Dutra, uma das maiores do país, e foi descoberto após determinar a amputação da perna de um acidentado, em março de 2022. Ele apresentava apenas o protocolo recebido quando se entrega os documentos ao conselho. O paciente foi levado e atendido por médicos na unidade de saúde e sobreviveu.
Durante o atendimento à CCR, concessionária que administra a Dutra, os colegas disseram que ele errou em procedimentos básicos.
Em outro caso, Lavísio atuou por duas horas em 3 de março de 2022, na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Votorantim, após ser contratado por uma empresa terceirizada. Na ocasião, o caso foi descoberto por funcionários da unidade de saúde, e ele foi denunciado.
Ele já havia cometido o mesmo crime em uma unidade de saúde de São Paulo. Além de mentir sobre a formação, ele fez uma lista de vítimas se passando por pastor evangélico, missionário na África, coach cristão e namorado, com mais de uma companheira ao mesmo tempo.
De Cambará, no Paraná, ele começou a apresentar um diploma falso de medicina pela Unicid, que negou que Lavísio tenha feito qualquer curso na instituição. Os prontuários que ele fazia seguiam com erros de português e com medicações iguais para pacientes com queixas diferentes.
Em um dos hospitais, ele receitou o mesmo antibiótico para três pacientes com queixa de dores de coluna e cabeça.
Lavísio foi investigado em ao menos dois inquéritos policiais. Em 2 de dezembro, no caso de exercício ilegal da medicina, que corre por Pindamonhangaba, a Justiça concordou que ele pague R$ 2.424, em 12 parcelas de R$ 202, como substituição da pena.
O g1 entrou em contato com Lavísio, que não respondeu quando questionado sobre os casos.
“Isso é uma coisa seríssima. O médico, ele estuda, tem uma formação, tem uma especialização para poder exercer essa carreira, essa profissão. E pessoas que, independentemente se vão ganhar ou não dinheiro, eles vão pôr em risco a vida das pessoas e é um risco grande para a sociedade”, disse Angelo Vattimo, do Cremesp.
‘Documento extraviado’
Linaete da Silva Angelo, moradora da região metropolitana, é investigada pelo 78º DP de São Paulo suspeita de tentar se passar por médica no Cremesp.
Segundo apurado pelo g1, o documento apresentado dizia que se formou em medicina em Santa Catarina. Em e-mail ao Cremesp, a universidade respondeu que o nome dela não consta nos dados da unidade.
O documento mostra como formação a data de 15 de dezembro de 2017, é timbrado e tem assinaturas como “Dra. Linaete”.
Em 28 de setembro de 2022, a polícia pediu mais tempo à Justiça para investigar. Em nota, o advogado de defesa disse que a cliente o informou que em 2013 ela teve extraviado os documentos no Rodoanel, em São Paulo, mas não fez boletim de ocorrência.
“Alega que desconfia que esse diploma tenha sido emitido com o uso de seu documento extraviado. Alega ainda que nunca atuou na área médica e que nem tampouco residiu no estado de Santa Catarina”, comentou o advogado ao g1.
Documento com foto apresentado no momento da inscrição no Cremesp — Foto: Reprodução
‘Vítima de golpe’
Lilian Caroline Gomes Bernardes apresentou o diploma em São Paulo com registro como se fosse de Fortaleza, no Ceará, em 10 de junho de 2021, e marca d’água do Ministério da Educação.
Segundo a defesa dela, Lilian é formada pela Icebol (Universidad Cristiana de Bolívia) desde 2017. Quando terminou o curso, ela retornou ao Brasil, mas precisava de revalidação do diploma.
O advogado alega que, por indicação de outros profissionais, ela entrou em contato com uma mulher que, segundo ele, era uma golpista.
“Por fim, Lilian atualmente está fazendo o processo de revalidação de forma jurídica, e, quanto ao inquérito, já defende sua inocência junto a Polícia Federal de São Paulo.”
Diploma de Lilian Caroline Gomes Bernardes — Foto: Reprodução
Biomédica
Ester Xavier da Silva Nascimento, do interior de São Paulo, é atualmente biomédica no Acre. Ela tem registro ativo no Conselho de Biomedicina da 4º Região, que é responsável pelos estados do Norte do Brasil, desde setembro de 2014.
Segundo o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (Cnes), desde 2007 há registros de atuação de Ester como biomédica na cidade de Tarauaca, no Acre, até setembro de 2020. Em janeiro de 2021, o Cnes aponta que ela assumiu como biomédica no Hospital Geral de Feijó (AC), onde trabalha atualmente, sem problemas, e de forma legal, conforme a administração da unidade informou ao g1.
Porém, ela apresentou ao Cremesp um diploma dizendo que se formou também em medicina — formação diferente da de biomedicina — em 12 dezembro de 2016. O documento falso trazia a data de emissão e outorga em 12 de abril de 2017, em Montes Claros, em Minas Gerais. Tudo era falso, segundo a apuração do Cremesp com a faculdade.
Procurada, ela afirmou, por meio do advogado, que foi vítima de um golpe, que houve uma fraude no curso de graduação e na emissão do diploma de conclusão de curso.
Diploma apresentado por Ester Xavier da Silva Nascimento — Foto: Reprodução
“Os fraudatários utilizavam de supostas instituições de ensino para disponibilizar cursos de graduação, emitindo documentos, declarações e realizando avaliações que faziam crer na regularidade do curso ministrado. A vítima prestou os devidos esclarecimentos sobre os fatos e provas, que foram encaminhadas para a autoridade policial.”
O caso é investigado pela Polícia Federal. Em nota ao g1, a PF disse que não se manifesta sobre “eventuais investigações em curso. Sigilo legal”.
Cancelamento
O nome de Regiane Michelle Gonçalves Luz foi mais um dos casos citados pelo Cremesp. Em novembro de 2021, foi identificado que ela tentou o registro com documentos falsos.
O Conselho Federal de Medicina encaminhou a anulação de inscrição a todos os conselhos de medicina sobre o cancelamento da solicitação de inscrição.
O nome de Regiane aparece na lista de espera do Prouni em medicina em 2019 na posição 139ª, com média 639,39 do Enem, numa faculdade de Minas Gerais. Ela não foi localizada pelo g1 para comentar o caso.
Documento apresentado por Regiane Michelle Gonçalves Luz — Foto: Reprodução
Falsos enfermeiros
Em 2022, foram identificados 12 diplomas não validados pelas instituições de ensino no Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (Coren-SP) no recorte de 35.380 novas solicitações totais em um ano.
James Francisco dos Santos, presidente do Coren-SP, detalha que, quando a análise do Departamento de Cadastro e Registro identifica alguma informação divergente ou alguma característica dos diplomas que fuja ao padrão, a autarquia notifica as instituições de ensino para que confirmem a validade daquele documento.
“Quando não há essa confirmação, o sistema do Conselho Federal/Conselhos Regionais de Enfermagem encaminha essas informações para investigação da Polícia Federal. A apresentação de documentos que não sejam oficiais, além de previamente configurar um aspecto ético condenável, é uma ameaça à segurança da assistência por parte dessas pessoas”, afirmou.
Em um dos casos, a mesma pessoa, com outro logo da mesma instituição, apresentou diploma com erros de grafia e a informação de que exerceu a função, em vez de tê-la cursado. Houve também uma situação em que um papel foi colado sobre o nome de outra pessoa, numa tentativa de alterar a identidade do dono do diploma.
Veja exemplos:
Certificado com erros — Foto: Reprodução
Segundo o Coren-SP, não existe tecnólogo em enfermagem — Foto: Reprodução
Documento falso levado ao Coren-SP — Foto: Reprodução
Papel colado sobre o nome de outra pessoa — Foto: Reprodução
Erros de grafia no documento — Foto: Reprodução